Plano de saúde para favelado subvencionado por traficantes e milicianos; cobrança de ágio na compra de bujões de gás; controle de votos nas eleições; conluios entre candidatos interessados em votos e facínoras mandatários reais das favelas; contrabando desenfreado de porcarias chinesas, paraguaias e demais quinquilharias; falsificações grosseiras de produtos nacionais, com graves prejuízos à economia; sem-terra aviltando as leis vigentes do país; narcotráfico; corrupção generalizada em todos os escalões e poderes do Estado; instituições governamentais agindo como facções contrárias à vontade geral do povo; motins em presídios, acrescidos de orquestradas manifestações de familiares de presos, todos choramingando diante da tevê como se os diabinhos não tivessem trucidado inocentes, e por isso foram condenados; adulteração de combustíveis; fraudes em geral…
Enfim, há outro poder, concreto, e provido de dinheiro, armas, tecnologia e pessoas, em contraposição ao poder público; e neste, direta e indiretamente, influindo nas decisões: o “poder paralelo”. E se há um “poder paralelo”, há de haver, igualmente, um “estado paralelo” representando a societas criminis e disputando o mesmo espaço físico ocupado pela sociedade organizada e por seu hipotético Estado Democrático de Direito, este que, na realidade, é hipertrofiado e demasiadamente interventivo, além de apodrecido pelos fatores sublinhados, dentre muitos outros nefastos à felicidade a ao bem-estar geral dos cidadãos ordeiros.
Esta é a situação brasileira contemporânea, mais ainda deturpada por uma mídia sem compromisso com a verdade e defensora de marginais. Mas retornemos ao passado para saber como deveria ser uma sociedade organizada e seu Estado: único, indivisível e situado como um instrumento de garantia dos direitos individuais dos cidadãos cumpridores da lei:
“A pena de morte que se impõe aos criminosos quase se pode igualmente considerar: para não sermos vítimas de um assassino toleramos padecer a morte, quando réus de tal crime. Longe de dispor da própria vida nesse tratado, nós cuidamos somente de a segurar, e não creio que algum dos contratantes premedite nesse tempo ir à forca; quanto mais todo malfeitor insulta o direito social, torna-se por seus crimes rebelde e traidor da Pátria, de que cessa de ser membro por violar a lei e à qual até faz guerra; a conservação do Estado não é compatível então com a sua, deve um dos dois morrer, e é mais como inimigo que se condena à morte que como cidadão. Os processos e a sentença são as provas e declaração de que ele violou o tratado social, e já não é por conseguinte membro do Estado; ora, como ele assim se reconheceu, quando mais não fosse pela sua estada, cumpre ser isolado dele, ou pelo exílio como infrator do pacto, ou com a morte como inimigo público; que tal inimigo não é uma pessoa moral, mas um homem, e eis quando o direito da guerra é matar o vencido.” (Russeau, Jean-Jacques, Do Contrato Social, ed. Martin Claret, São Paulo, SP, 2004).
Muito se poderia aqui acrescentar, mas creio que basta para situar a reflexão no seu ponto crucial, que é o atual funcionamento da sociedade brasileira e de seu suposto Estado Democrático de Direito, podendo-se considerar que nosso “contrato social” seria, em tese, a Carta Magna, advindo daí todo o resto.
A verdade, porém, é que o que se pratica no Brasil está mais para anomalia social consentida por uma sociedade formada por facções e associações parciais interferindo no sentido de distorcer os valores filosóficos, sociais e legais, de tal modo que hoje não mais o cidadão sabe onde começa ou termina o seu direito de sócio desta ambígua sociedade que, decerto, foi organizada com o fim supremo de garantir a felicidade e o bem-estar de todos os que se comprometeram em ceder sua liberdade natural para viver uma liberdade de convenção resumida numa existência feliz e profícua. Enfim, o cidadão-sócio, respeitador das regras contratuais, não mais responde pela vontade geral.
Hoje há mais grades nas residências que nas prisões. A liberdade é privilégio dos facínoras, e tanto faz que sejam eles delinquentes de crimes menos graves ou praticantes contumazes de crimes hediondos. Tudo, afinal, começa com o primeiro passo, servindo a impunidade como alavanca desses “pobrezinhos”, que apenas arrancaram o tênis ou o celular de um colegial indefeso, que ficará o resto da vida traumatizado. Ora, se se associar toda essa baderna social, toda essa anarquia consentida e estimulada por uma mídia hipócrita e sensacionalista, mas que dela mesma, é claro, não fala mal, dando-nos a falsa impressão de que jornalistas são semideuses; se se associar tudo isto ao fato de algumas instituições se apresentarem como “salvadoras da pátria”, querendo porque querendo mais poder além do exagerado poder que já detêm, a ponto de seus membros não serem investigados a não ser por eles próprios, e ainda quererem investigar toda a sociedade em nome desse Estado falido, reunindo o componente de força às suas estruturas; se se associar tudo isto à realidade brasileira, a conclusão é somente uma: vivenciamos uma teratogenia social, um caos cuja solução, mais adiante, será única e inevitável: outra ditadura. Será isto o que almejamos?…
Ora bem, os últimos motins ocorridos no ambiente social, que de novidade nada têm, bastando tornar ao passado e relembrar fatos idênticos ocorridos em outros Estados-membros, deixaram mais que evidente o poderio dos vândalos. Acresce como prova cabal disso tudo o nem tão antigo episódio da Rocinha, clara demonstração de que as facções criminosas comandam o nefasto espetáculo social dentro e fora das cadeias, dominando uma numerosíssima parcela da população não somente submetida ao jugo dessas hordas de malfeitores, mas também revoltada contra um poder público que nada lhes oferece além de repressão policial. E a polícia, em vez de receber o apoio da sociedade, é tratada pela mídia como escória da mesma sociedade que formou as demais categorias sociais e segundo a mesma cultura do “jeitinho brasileiro” a criar neologismos subjetivos e até surreais, como, por exemplo, “ataque à democracia”…
A dinâmica dos acontecimentos tem provado a desorganização do Estado e a incompetência generalizada ou deliberada de governantes e parlamentares eleitos pelo povo da forma anômala como se vê mesmo sendo vesgo, com grande maioria dos votantes entre os revoltados.
Esses maus dirigentes, ainda preocupados com as eleições seguintes, atuam de modo ambíguo, sem saber que caminho tomar para solucionar o problema da criminalidade organizada no seu todo globalístico, de modo a não perder os votos controlados por bandidos da favela e do asfalto. Enfim, os políticos se veem num dilema: encontram-se aprisionados por seus próprios e imediatistas interesses, e todos, independentemente de partidos políticos ou de ideologias, estão engrupindo o povo com suas repetitivas falácias e ameaças reais.
Ora, quem sofre as consequências desse caos social é a sociedade organizada, esta que deveria fazer prevalecer sua vontade geral sobre o poder público que a representa, como seu único guardião, no cumprimento do contrato social. Mas, como fazê-lo, se a vontade geral está dominada por um poder paralelo cuja força equivale ou quiçá é maior que a capacidade de coerção poder público e da própria sociedade? Como a dita sociedade organizada pode exigir alguma coisa do Estado, se ela própria se confunde com a societas criminis, como se tem constatado na prática da convivência social? E, por fim, se indaga: será que situação tão complexa se resolve com repressão policial e outras equivalentes?… Ora, ora, a polícia só reprime quando todos os mecanismos de controle social falham. É este o ideal da democracia brasileira?…
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