Eivado de contradições, antiquado, cópia de diplomas legais destinados ao Exército Brasileiro (EB) em épocas remotíssimas, ou adaptações malfeitas desses mesmos diplomas, a legislação disciplinar da PMERJ abate sobre a tropa em tal intensidade de imediatismo e injustiça que não seria demais afirmar que chega às raias da violência de superiores contra subordinados.
Ressalvadas as exceções, trata-se, com efeito, de modelo centrado em torno de coisas e não de pessoas; ou melhor, modela-as, as pessoas, como se fossem coisas. A começar pelo Estatuto, que se assemelha ao do EB em tempo de II Grande Guerra. Mas, enquanto o da força federal se aprimorou com o passar dos anos, a PMERJ mantém-se fiel ao carcomido modelo para evitar que convocados para a guerra se escusassem de suas responsabilidades inventando doenças, por exemplo.
Na verdade, e sem exagero, a legislação da PMERJ é igual à do EB até nos pontos e vírgulas, “cópia xérox” da outra, que, como dito, adaptou-se aos novos tempos, enquanto a da PMERJ permanece no mesmo porto de embarque dos tempos da guerra. Inclui-se também no exemplo de legislação anacrônica o Regulamento Disciplinar (RDPM), que, para variar, em nada difere daquele modelo antigo destinado ao EB, este, porém aprimorado ao longo dos anos. Acrescem-se a esse modo preguiçoso de copiar o que já está feito os textos referentes aos Conselhos de Disciplina (CD), de Justificação (CJ) e de Revisão Disciplinar (CRD), demais do Conselho Escolar Disciplinar (CED), este último destinado a avaliar cadetes, porém todos aberrantemente inconstitucionais e inadequados aos novos tempos.
De forma draconiana, a legislação disciplinar da PMERJ se volta contra a tropa como se fora borduna de bugre. Cobra deveres exagerados e pune com rigor excessivo em regime onde prevalece a desconfiança de cima para baixo. Em contrapartida, há a insatisfação e a revolta de baixo para cima. Pior que tudo isso: a Justiça (Varas de fazenda Pública) costuma privilegiar as péssimas soluções disciplinares adotadas pela PMERJ, ressalvadas algumas importantes decisões que, aos poucos, estão predominando em favor dos prejudicados. Porém, ainda não se formulou uma jurisprudência segura e extensiva aos injustiçados em geral. Mais fácil seria a PMERJ mudar o modelo; porém, não parece que isso incomode a nenhum dirigente, nem de ontem, nem de hoje, e quiçá nem de amanhã.
A impressão que fica é a do desleixo, ou pior, da incompetência daqueles que deveriam primar por um melhor futuro institucional. Contrário disso, porém, o modelo enraíza-se no que Erich Fromm designa em seu livro (Ter ou Ser?) como “modo ter” (“sou mais, na medida em que tenho mais”), com predomínio do egoísmo, da indiferença pelos valores pessoais em vez do respeito à dignidade da pessoa humana.
A questão crucial é que o egoísmo, como igualmente ensina o importante estudioso, “refere-se não só ao nosso comportamento, mas também ao nosso caráter”. Maior exemplo do caráter dos dirigentes, em sua maioria, resume-se numa frase muito ouvida internamente: “Tenho a tropa na mão!” Isto, em resumo, o supracitado autor designa como “autoridade irracional”, típica autoridade hierárquica baseada no “ter”. E, neste caso, o desfecho seriam as “relações sociais autoritárias”, que se reduzem à ideia seguinte: “a autoridade hierárquica está estreitamente relacionada com a marginalização e o enfraquecimento dos que não têm autoridade.”
Enfim, vê-se a ênfase no “modo ter”, em detrimento do “modo ser”, embora o primeiro esteja sempre dissimulado no “parecer ser”, na “persona”, embotando o “ter” por meio da falsa projeção do “ser”.
Neste ponto, deve-se esclarecer que Erich Fromm generaliza a dimensão de seu estudo justificando-o como situação inerente a toda a humanidade, o que explica o modelo PMERJ não como aberração única, mas apenas vagão acoplado à locomotiva do “modo ter”. Só que, na prática, as atividades policiais deixam de ser produtivas e geradoras de motivação, dando lugar ao pessimismo e à desesperança. Por isso, é comum verificar que o maior prazer do PM é a folga longe dos olhos desconfiados e punitivos dos superiores. Mas esse prazer não faz bem à saúde psíquica e física da pessoa humana representada pelo PM, mormente o de menor graduação ou patente.
Na verdade, o “caráter” voltado para o “modo ter”, por ser generalizado e cruel, provoca situações ambíguas e até estapafúrdias nas relações internas: o PM que sofre pressões de cima transfere-as para baixo até alcançar o soldado, este que, por sua vez, desconta tudo no destinatário dos seus serviços; o cidadão a quem deveria proteger. E espera “ter” o máximo que possa conseguir materialmente, para logo arribar de tão odiosa profissão. Com efeito, é esse homem que vai às ruas para proteger o cidadão…
Ora bem, talvez valha a pena discutir seriamente a questão da legislação disciplinar alterando o seu foco, que adrede rotula o ser humano como fundamentalmente mau, para outro, mais salutar, que situa o homem como basicamente bom, capaz de executar atividades produtivas e ser feliz.
O inverso, porém, é o que prevalece: a execução sistemática de tarefas restritas ao “cumprimento do dever” e à fuga das ameaçadoras punições por motivos comezinhos. E, ao final das tarefas, surge invariavelmente a tristeza e a revolta de subordinados contra superiores, bagunçando a hierarquia e a disciplina, que devem ser respeitadas sempre e de modo salutar.
Com efeito, a crítica não justifica a quebra da hierarquia e da disciplina nem justifica a desídia em relação aos sinais de respeito que caracterizam a vida castrense. Mas isto já acontece, e muito, por causa da revolta acumulada, pior é que muitas vezes acobertada por “bondades”, num sistema em que a impessoalidade é imperativa, mas se fixa na pessoalidade da maldade…
É assim a disciplina na PMERJ: a imposição pelo temor da punição, em vez de um sistema de motivação que primariamente dignifique o ser humano em sua condição de servidor público policial-militar. Cá entre nós, não é difícil mudar, basta coragem e crença na qualidade a ser aprimorada, e não na quantidade a ser descartada como lixo inservível.
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