Ao leitor:
Quando escrevo textos para postagem neste espaço, atenho-me ao assunto sempre com a intenção de que seja útil. Não estou limitado por número de linhas ou palavras, como muitas vezes me exigem em textos destinados à publicação em outros blogs, jornais etc., o que é natural. Aqui, o princípio é o da minha liberdade de comunicar algo que possa servir como objeto de reflexão aos interessados por uma ordem pública dependente da ação de pessoas que compõem uma complexa engrenagem. Quem são essas pessoas de ontem e de hoje?… No caso, exponho-me como um exemplo dentre vários que podem ou não guardar entre si alguma similitude. Geralmente guardam. Afinal, somos subsistemas de um só sistema…
Síntese de uma realidade vivenciada
Lembra-me a fraca memória das obrigações e punições eclesiais e escolares de minha infância vivida em bairros periféricos de Campos e Niterói. Sobre as primeiras, e dentre outras chatices, o dever do comparecimento à missa aos domingos e às aulas de catecismo; demais disso, havia o indefectível carimbo na caderneta de presença à missa, na porta da igreja, para apresentá-la ao colégio público na segunda-feira, sob pena de eu não conseguir assistir às aulas, e não sem antes a minha mãe ser chamada às falas pela direção. No colégio, o costume da palmatoada era levado ao extremo por bedéis e professores. Na falta de palmatória, como aconteceu certa vez comigo e minha “amada” professora, fui por ela agredido a “sombrinhadas” e posto de castigo olhando para a parede de um canto da sala. Como sempre, ela estava coberta de razão…
Passada a fase que me afastou das religiões, permaneci sob pressão nos estágios seguintes do primeiro e segundo graus (ginásio e científico). Incrível, mas até estudando à noite, e já adulto, ainda enfrentei problemas com bedéis devido a minha intransigente vontade de me sentir livre. Muitas vezes fui posto ante a diretoria do colégio a me explicar e jamais justificar coisa alguma. Como, porém, havia um diretor meu parente distante, eu me salvava da expulsão pelo gongo do parentesco.
No trabalho, durante o dia, a vigilância hierárquica e os maus-tratos eram piores ainda. A ameaça de perda do emprego tornava os empregados submissos. Eu, sempre inconformado, não raramente fui demitido por desferir palavras de baixo calão ofendendo meus opressores (gerentes e donos de lojas nas quais pouco durei como empregado). Se permaneci em alguns lugares, não foi por outra razão se não o parentesco com o dono ou com algum diretor, pois eu era um ramo pobre duma árvore genealógica de família rica. Azar o meu, pois nascesse um pouquinho mais à direita ou à esquerda da árvore, nem necessitaria de trabalhar. Por outro lado, sorte minha, porque fui amparado por parentes e venci o tempo e alguns gerentes e chefes que me demitiam no meio das peças de carros que eu contava, depois de receberem a minha recusa em varrer algum canto da loja (eu era controlador de estoque; não era faxineiro). Tão logo subia a ordem de demissão, quem a recebia era meu tio, o patrão, o dono do negócio, meu parente rico e bondoso. Assim, meu opressor quebrava a cara, para gáudio de muitos empregados oprimidos e sem a sorte do pobre parente de rico.
Claro que minha recusa ante o anúncio da demissão, que geralmente não se concretizava, acompanhava-se de palavrões e ofensas diretas ao desavisado. Algumas vezes incluía até correria atrás dele com um setor de direção de caminhão F-600 (Ford) muito parecido com borduna de bugre. Bela cena! Era assistida por todos os empregados, que vibravam vendo aquele “galinho garnizé” de “borduna de aço” na mão a tentar alcançar o apavorado gerente e quebrar-lhe a cuca. Foi assim que trabalhei e concluí o curso secundário. Depois, convencido por meus tios, que foram policiais militares do “tempo do onça”, ingressei na PMRJ como soldado raso. Ótimo emprego, por sinal, pois passei a ganhar o dobro do que percebia como comerciário, ou seja, dois salários mínimos. Bons tempos!
Era o ano de 1965…
Na vida militar (literal naquela época), – aquartelada, – aprendi a ser soldado na acepção mais cristalina do substantivo. O policial era complemento quase que adjetivo. Mas, embora houvesse o império da hierarquia e disciplina militares, o cotidiano era saudável e de camaradagem, salvo algumas exceções. Nesse período em que fui soldado raso, lembra-me alguns superiores que se tentavam impor pelo terror dos regulamentos, mas não logravam êxito. Havia um sistema de freios e contrapesos que garantia o respeito mútuo nas relações entre superiores e subordinados.
Claro que eu, – com minha índole questionadora, – tive alguns problemas. Nem tantos que me indispusessem com o sistema militarizado. Nele, não havia a figura do patrão, agora substituída pelo Estado. Como afirmei, as normas valiam indistintamente para superiores e subordinados e as relações internas não eram tão estressantes. Havia, sim, de quando em quando, algum problema disciplinar e punições. Havia também desvios de conduta graves e punições que iam das penas brandas às exclusões ou expulsões daqueles que desmereciam a corporação. Confesso, porém, que as pressões e injustiças intramuros do quartel me pareciam menos intensas: as agruras que enfrentei no mundo civil foram piores.
A verdade é que gostei da vida militar e de ser PM. Animado, ingressei na Escola de Formação de Oficiais, regime de internato bem mais rigoroso que nos meus tempos de recruta e soldado, e, em alguns momentos e situações, extremamente injusto. A preocupação dos superiores e instrutores em zelar pela boa formação do futuro oficial ultrapassava o rigor excessivo. O ritmo do curso e o sistema de vigilância e punição transformavam os cadetes em máquinas. O controle do tempo e dos movimentos dos alunos alcançava as raias da loucura. O único direito do cadete, ou aluno-oficial, ou simplesmente aluno, era o de não ter direito algum. O único direito, para ser sincero, era o de cumprir com os exaustivos deveres desde a alvorada, às 05:00h, ao toque de silêncio, às 22:00h. Na sexta-feira, os que não estavam escalados de serviço eram dispensados ao final da tarde, não sem antes ouvirem a leitura do boletim, surpreendendo-se alguns com o “licenciamento sustado” (fim de semana aquartelado) por mínimas faltas ocorridas durante a semana, muitas delas nem percebidas. Essa cultura de sustação da dispensa tornava a semana um ambiente de temor e apreensão.
Nesse clima de tormento, a disposição dos cadetes resumia-se a cumprir rotina e decorar polígrafos, que incluíam a obrigatoriedade de saber o tamanho do degrau da escada de incêndio ou em quantas partes se divide o cavalo ou o fuzil ordinário (FO). Não havia tempo para filosofar, isto seria crime naquele contexto. Pensar?… Nem pensar!… E às horas de “decoreba” somavam-se aquelas igualmente decoradas pelos instrutores, os exercícios físicos e a ordem-unida, que, no seu conjunto, transformavam os cadetes nos “corpos dóceis” relatados por Michel Foucault. E finalmente férias…
Ó doces férias!… Descompressão, abraço ao mundo exterior e… pânico: se o mundo intramuros espantava-me, o extramuros me parecia estranho depois de tanta “lavagem cerebral”. O somatório desse exercício de loucura, ao fim e ao cabo de três anos, resultava no aspirante-a-oficial, que, depois do período de seis meses de estágio probatório em quartéis operacionais, era promovido a segundo-tenente, um oficial pronto e acabado. Para quê?…
Muito bem, voltemos um pouco aos meus tempos de soldado para sublinhar dois fatos que mudaram minha maneira de pensar sobre o militarismo: fui duas vezes trancafiado em xadrez sem motivo, além de execrado por meus algozes: dois tenentes do “tempo do onça”. Não entrarei em detalhes a não ser para afirmar que passei a odiar, pelo resto da vida, o “compartimento fechado denominado xadrez”.
Já tenente, até quase capitão, servi na Companhia Escola de Recrutas. Lá não havia xadrez e não fez falta alguma. A disciplina dos cursos era rigorosíssima, mas a cultura disseminada era a da disciplina consciente. Formávamos na época um grupo de tenentes dispostos a não confundir treinamento com lavagem cerebral. A instrução era duríssima, sim, mas cada instrutor explicava suas razões de modo a evitar a transformação de jovens recrutas em máquinas. Participei desse processo de mudança de ensino e instrução durante anos a fio, e quem por lá passou, pelos idos de 1970 em diante, sabe que foi assim a Cia Escola, como nós a chamávamos no dia-a-dia. Bons tempos que pouco duraram, pois as Polícias Militares brasileiras passaram a substituir as Polícias Civis no policiamento ostensivo em todo o país. E se iniciou um período de ambivalência profissional resumida na dúvida (ou dilema?): ser militar ou policial?…
É desse momento em diante que o “militarismo policial” perde a lógica; e vem perdendo a batalha contra a criminalidade em processo de autodestruição talvez irreversível: a vivência era outra; o treinamento objetivava o militarismo de força auxiliar reserva do Exército Brasileiro; a manutenção da ordem pública resumia-se aos grandes policiamentos e ao emprego de efetivos comandados ao modo “tropa”; o homem não atuava isolado nem em dupla, salvo poucas exceções para justificar a existência e a utilidade das Polícias Militares no contexto do ambiente social nacional. E as Polícias Militares, – acostumadas ao ocioso aquartelamento, ao romantismo do “cosme-e-damião” e ao treinamento baseado em cenários fictícios, – foram às ruas enfrentar a desordem pública que explodira no planeta com a proliferação do tráfico de drogas e de armas, surpreendendo o sistema viciado em “defesa interna” e “defesa territorial”.
O foco agora era a segurança pública e sua equivalente “defesa pública”; o quartel tornou-se quarteirão; a ficção tornou-se realidade; o militar deu lugar ao policial; a tropa tornou-se indivíduo; e as pressões desancaram o equilíbrio representado por um militarismo cuja hierarquia fundava-se na camaradagem entre superiores e subordinados, e numa disciplina consciente; a confiança cedeu lugar à desconfiança; os interesses típicos do micropoder policial começaram a predominar na cultura da tropa, que deixara de ser tropa aquartelada para se tornar “forma e tipo de policiamento ostensivo”. O restrito quartel fragmentou-se no exigente ambiente social em “áreas, subáreas, setores, subsetores e roteiros de patrulhamento”.
Com efeito, o anterior “sentir-se militar” naturalmente predominando sobre o “ser policial” desequilibrou-se deveras; a calmaria dos quartéis rendeu-se à turbulência ambiental; as cobranças regulamentares perderam seus limites, antes salutares, e se tornaram doentias; a tropa, antes musculosa, engordou; a beleza da farda deu lugar ao temor de usá-la; a medo dos bandidos, os militares das Forças Armadas e das Polícias Militares sumiram das ruas; suas identidades foram parar na sola dos pés, dentro dos sapatos; nunca mais se viu farda de PM pendurada nos quintais secando ao sol aberto.
É o que vivenciei ou assisti desde que fui às ruas sem qualquer preparo, como se a “tropa” não ultrapassasse a ideia dos bonequinhos de chumbo de nossas ficções estratégicas, táticas e operacionais em “teatros de operações” e “cenários” projetando ações como num “set de filmagem”. Tornamo-nos, nós, policiais militares, seres de carne e osso e alma a enfrentar isoladamente os perigos reais; os tiros de festim dos nossos treinamentos hoje se reduzem às honras fúnebres nos cemitérios que nos acolhem diariamente.
Hoje, os tiros são reais; a nossa imagem é ruim, apesar do sacrifício extremo a que somos submetidos; o militarismo, antes vocacionado e saudável, transformou-se em arma contra a tropa individualizada ao modo policial. Não somos mais militares, apenas fingimos ser para efeito de cobranças regulamentares típicas do militarismo em tempos de guerra ou em tempo algum. A culpa é sempre do subordinado. O militarismo PM incorporou ao seu dia-a-dia a lógica cruel da punição banalizada e a alegria anterior rendeu-se por inteiro à tristeza.
Ah, se houvesse mercado de trabalho disponível ao jovem brasileiro, poucos aceitariam ser policiais militares. Mas, como a miséria é grandiosa, e é melhor morrer de tiro que de fome, a fila de ingresso na PM, – tal como a boiama que aumenta nos pastos enquanto as florestas desaparecem do mapa brasileiro, – a fila de ingresso na PM é tão tamanhona quanto a fila de policiais-militares enterrando os companheiros descartados da vida na tenra idade. Ontem, a lógica era a de que o bandido morria cedo; hoje, a lógica é a de que o policial-militar morre antes. É o que vivenciei na juventude dos bons tempos e na maturidade dos maus tempos hodiernos. E sofro as mesmas dores ao perceber que tudo piora e tende à caótica desordem pública…
Fosse eu agora o jovem de outrora, não me arriscaria a começar a vida na condição de soldado PM. Nem de oficial. Preferiria me submeter aos irascíveis gerentes e patrões civis, ou tentaria concurso em outras profissões estatutárias. Pois, quando vejo, hoje, um jovem ingressar na PMERJ (infelizmente não pude evitar que parentes meus assim o fizessem), sinto uma profunda angústia. Não consigo projetar sua imagem à velhice; espelho-a em exemplos reais de jovens entregues aos cuidados médicos dos nossos hospitais: paraplégicos, tetraplégicos, desmembrados por tiros de fuzil ou acometidos de graves doenças psiquiátricas e psicológicas; ou, pior que tudo: vejo-os facilmente descartados da corporação como lixos inservíveis à reciclagem. Mas nada disso é problema dentro da lógica do “militarismo policial” de agora. A fila de “vocacionados ao abate” aumenta na proporção do crescimento populacional e da miséria do povo. Árvores são cortadas, as florestas diminuem, a boiama multiplica-se nos pastos tristes, as nascentes secam, a vida e a morte continuam enquanto o planeta Terra viaja pelo Universo, ambos indiferentes ao desastre social que nos assola por nossa culpa exclusiva…
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