Breve história
Um dos mais graves problemas, e por isso relevante na PMERJ, é o sistema disciplinar/hierárquico. Ele necessita urgentemente de ser revisto para atender ao princípio da “impessoalidade”, que, de tão relevante na administração pública, inclusive militar, está gravado como cláusula pétrea no caput do Art. 37 da Carta Magna.
Levando o tema ao campo prático, o problema hierárquico/disciplinar, consiste no inverso do que preconiza a CRFB, pois a hierarquia permite idiossincrasias disciplinares cruéis, por conta de uma “pessoalidade” além do normal no cotidiano do exercício profissional do PM, alterado da água para o vinho quando a corporação deixou de ser “Força de Segurança” aquartelada para se tornar “Polícia Administrativa” (“Serviço de Segurança”) no ambiente social, como regra, quando, na realidade, e historicamente, era exceção. Enfim, de tropa aquartelada no seu conceito militar, tornou-se tropa de policiais administrativos sem que houvesse qualquer preparo psicológico e conceitual, não apenas para a tropa de graduados e praças, mas também para oficiais, incluindo comandantes, chefes e diretores, com destaque para as unidades operacionais.
A mudança de hábito foi brusca. Não houve tempo de preparo, tudo aconteceu, “mediante ordem”, a partir de 1964. As cobranças então começaram, tudo aleatório, sem qualquer planejamento estratégico, ou tático ou operacional. As Polícias Militares brasileiras começaram a atuar nas ruas e logradouros segundo a vontade dos comandantes de unidades operacionais, estes, pressionados pelo andar de cima de um edifício sem fundação. É claro que essas impensadas medidas, por mais boa vontade do Exército Brasileiro, que deu a ordem, não focavam a criminalidade que se apresentava no ambiente social como um problema, mas traduziam bem mais uma estratégia de ocupar as PPMM, fracionando-as nas ruas e logradouros, assim desconcentrando-as, dentro da ideia central do “dividir para enfraquecer”.
Sim, porque havia uma preocupação do Exército com sublevações lideradas por governantes estaduais, isto como hipótese, o que seria um problema num ambiente social brasileiro já bastante afetado por convulsões sociais tendentes ao descontrole de um efetivo com cultura de tropa militar e de combate ao “inimigo” como base futura de Defesa Interna e de Defesa Territorial, cenários que se fizeram presentes durante a II Grande Guerra e se mantiveram enraizados na mente dos militares estaduais como Forças Auxiliares Reserva do Exército Brasileiro. Assim se instituiu na PMERJ o “vício do cachimbo”.
Portanto, ante o cenário agora levado ao campo real e prático da Defesa Interna, era imperativo retirar as PPMM dos quartéis e da ociosidade mental típica de tropa aquartelada e treinada como militar, com todas as suas implicações, incluindo a cobrança rígida da hierarquia e da disciplina, que, antes de ser solução, passou a ser problema, pois o que antes era uma disciplina de tropa militar (os “corpos dóceis” de Michel Foucault) resolvida com ordem unida, passou a ser individualizada e freneticamente cobrada dos PMs (agora policiais de rua), bastando para tanto uma notícia ruim nos jornais e fim de festa e da carreira, cultura insana que ainda hoje perdura e responde pela maior parcela de injustas exclusões disciplinares.
Os princípios que norteiam essa cultura hierárquica/disciplinar aterradora são simples e facilitados pelo fato de ser volumoso o número de jovens sem mobilidade social, que optam pela PM como grata possibilidade de sair da “linha de pobreza” e garantir uma vida melhor para a família, que, por fim, constitui numa aparentemente ótima solução, sem preocupação com as vicissitudes da nova profissão, antes tão ruim que os candidatos a usarem farda de PM eram apanhados no ambiente social “a pau e corda”, como nos informa a História das PPMM Brasil afora, e nem tanto tempo faz…
A verdade é que a nova atividade a ser exercitada pelas PPMM naturalmente exigiu o aumento considerável do efetivo, tornando o controle de seus atos um grave problema a ser resolvido. Nem tanto, afinal, pois havia desde antes o sistema de “pau e corda”, a hierarquia e a disciplina rígidas, aquelas tão bem retratadas intramuros e extramuros de quartéis pela figura do Major Vidigal, magnificamente retratada no clássico de Manuel Antonio de Almeida: “Memórias de um Sargento de Milícia”:
“O Major Vidigal era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo da administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa alçada não havia testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das sentenças que dava, fazia o que queria, e ninguém lhe tomava contas. Exercia enfim uma espécie de inquisição policial.”
Era assim na cultura anterior da Polícia Civil em sua atividade de polícia administrativa no ambiente social, nos tempos da malandragem, em que os policiais levavam uma laranja para ver se ela descia pela calça do “suspeito”; se a boca apertada não permitisse que a laranja saísse até o chão, era motivo suficiente para enquadrar o personagem na “vadiagem” excrescência legal sumida do mapa por graça divina, segundo a “moda” (cultura da época) nem tão distante no tempo.
Assim foi o PM, imitando os “métodos” da PC, ou seja, tudo aleatório, devido à carência de uma doutrina de ação individualizada. E, se não bastasse, a arma principal do PM jorrado nas ruas era o “FO” (“Fuzil Ordinário”), creio que da marca “Mauzer”, com peso médio de sete quilos, baioneta pendurada no “cinto de guarnição” com ilhós onde tudo era pendurado, como “árvore de Natal”, se a memória não me trai (não pretendo pesquisar), e um calibre 7mm de “matar avião” e quase deslocar o ombro do atirador ante o famoso “coice”.
Mas havia a solução do revólver 38, o famoso “tresoitão” de seis tiros usado à “moda faroeste” por falta de critério e abundância de improvisos. Exatamente assim os PMs “foram à guerra”. Mas a tal “guerra” era contra seus compatriotas, cidadãos ordeiros e trabalhadores, porém postos em suspeição nas “revistas ao modo Vidigal”, sem qualquer controle de comportamento operacional individualizado. Isto se vê ainda hoje por conta de “metas a alcançar”, o que nos remete aos tempos da suspeição infundada, ou seja, da “vadiagem”, só faltando a laranja…
Teria sido pior, sem embargo, se não houvessem a hierarquia e a disciplina como ameaça na cobrança de comportamentos individualizados. Se fossem ruins ou até escabrosos, a solução era simples: expulsão sumária do infrator com a descarada afirmação de que tudo ocorrera respeitando a “ampla defesa e o contraditório”!… Mas, se o comandante for igualmente truculento, isto é suficiente para o PM ser internamente “o tal”, ou seja, “valentão”, “matador” e outras “qualidades” (?) ou “defeitos” (?) sujeitos às idiossincrasias reinantes. Meu Deus! Dá-me tremedeira por eu mesmo vivenciar a mesma cultura insana nos tempos da juventude e da empolgação, para não dizerem que sou “exceção à regra”, quando, na verdade, confesso a mea culpa: fui também a “regra”, exceto quanto ao respeito aos direitos dos companheiros PMs, porque, afinal, fui soldado raso da PMERJ e vivenciei, como todos os praças, essas insuportáveis idiossincrasias!…
Incrível, mas somente em 1983, por iniciativa do saudoso Coronel PM Jorge da Silva, – pessoa ilustrada e conhecedora do comportamento dos PMs em relação aos cidadãos mais simples (negros e favelados – ele era um deles), – o Coronel Jorge da Silva, ainda capitão, montou um corpo de doutrina de ação para a PMERJ, que se constituiu nos seguintes documentos orientadores: Bases Doutrinárias de Emprego da PMERJ, Normas Gerais de Policiamento, Plano Geral de Policiamento, assim reforçando e resumindo um esforço anterior, o Manual de Policiamento Ostensivo (M-4), rabiscado ao modo militar, porém útil como ensinamento e, incrível, ainda em vigor na corporação.
Foi por meio da iniciativa do Coronel PM Jorge da Silva que os PMs finalmente tiveram um “norte”, mas, para desgraça do PM, a gráfica que elaborava esses pequenos manuais orientadores foi fechada pelo insigne Cel PM Carlos Magno Nazareth Cerqueira, ex-secretário de Polícia Militar no primeiro e no segundo desgoverno Brizola. Ele extinguiu a gráfica não se sabe por quê. Talvez (quem sabe?), por constar como normais algumas “Medidas Operativas”, algo inadmissível num governo omisso em relação ao controle da criminalidade, dentre outras loucuras. Por sinal, esse foi o tempo das piores idiossincrasias de comandantes operacionais, e muitos, muitíssimos PMs ganharam o “olho da rua” por quaisquer razões não apuradas e fundadas nos velhos princípios da hierarquia e da disciplina, que se tornaram pujantes nesse infelicíssimo período da História da PMERJ.
Por conseguinte, mudar é preciso, atualizar é preciso, humanizar é preciso, impessoalizar é preciso. É ordem constitucional, é imperativo constante como pétreo na Carta Magna, no seu Art. 37, caput. Porque é certo que os atuais instrumentos disciplinares são desgraçadamente “pessoais”, remete-nos à figura do comandante-geral e de seus comandantes de unidades operacionais como autênticos “monarcas”, lídimos “imperadores”, que tudo podem nessa corporação militar estadual que é tão piramidal que a figura do mandatário máximo é como o pico de uma pirâmide da grossura de uma ponta de agulha; o “Del-Rei”!… Enfim, internamente, o comandante-geral, salvo exceções, tem em si incorporado o espírito incontrolável do Major Vidigal, sem quaisquer pesos ou contrapesos a travá-lo num limite razoável.
Ora, no fim de contas, e para que a síntese não se torne um volumoso Manual do carcomido tipo “M-4”, há de haver uma revisão séria do sistema hierárquico/disciplinar da PMERJ, sendo certo que não há como separar uma coisa da outra, como se tratasse da descrição de um abridor de latas. Ora bem, lidamos com seres humanos que recebem poderes, mas não têm como contrapartida seus direitos constitucionais de ampla defesa e de contraditório respeitados, porém somente citados como cacoete ditatorial.
Como não se deve apresentar o problema e não cuidar da solução, faremos isso também, num outro momento, aproveitando exemplos de colegiados independentes e decisivos para o trato da hierarquia e da disciplina na PMERJ, podendo o modelo ser adotado por outras instituições militares estaduais depois de sistematizadas em lei, de preferência federal, conforme preceitua o Inciso XXI do Art. 22 da CRFB e leis referentes.
Ou seja, basta instituir um colegiado disciplinar por Comandos de Área, nos moldes de uma Corte Militar independente, insuspeita e autônoma, garantindo-se a ampla defesa e o contraditório não como vício formal pro forma, mas com a participação de advogados, em total transparência e obrigatória publicidade do julgamento, com direito a uma segunda instância disciplinar independente e autônoma em grau de recurso, cabendo ao comandante-geral (ou Secretário de Estado da PM) apenas nomear o colegiado sem interferir no resultado da decisão colegiada.
Simples assim, é só formatar um bom projeto de lei federal a ser adequado á estrutura de cada corporação policial-militar, podendo os “julgadores disciplinares” contar com o concurso de perícia e de outros meios de comprovação do fato, que deve ser posto com exatidão antes da decisão, sob pena de nulidade e de cobrança de responsabilidade dos julgadores, sendo de bom alvitre a presença não obrigatória do Ministério Público para fiscalizar o sistema, com base no Art. 55 do CPM, o que se justifica por analogia dos princípios gerais do Direito.
Comments